segunda-feira, 14 de novembro de 2011

a arte de falar (de 2003)



Gostaria de começar este encontro sobre a arte de falar, dentro de uma abordagem poética, dizendo da grande alegria que é poder estar aqui. Primeiro por nunca ter falado para tanta gente; segundo, porque não tendo muita habilidade nisso de falar (não sendo a minha praia mais frequentada, digamos assim), eu fui procurar o que havia de singular na minha experiência com a palavra para dividir com vocês. Minha habilidade maior sempre foi escrevendo ou corrigindo, no sentido mesmo da língua, o que outras pessoas escrevem. Mas se a gente tomar esse falar pelo que eu entendo como se expressar, aí sim, talvez eu tenha algo a dizer. Porque, mesmo, eu acho muito bonito isso da gente se dizer. Numa cultura tão rica como a nossa, em que, mesmo dentro da maior pobreza, se pode considerar toda essa herança cultural como um berço de ouro, acho fundamental a gente ressaltar isso: a importância da expressão de cada pessoa como única, singular, intransferível. E, nesse sentido, perceber o poder da palavra é por demais interessante. Sabem por quê? Porque é a palavra que dá forma ao mundo. É ela, a palavra, que funda o mundo. Nesse encadear letra com letra, sílaba com sílaba, palavra com palavra, frase com frase, período com período... a gente vai construindo o mundo à nossa imagem e semelhança — quase como um deus. Ou uma deusa. Isso pode parecer uma heresia, mas não é. Isso é uma profissão de fé, no meu entender. E nos torna, de fato, responsáveis — sujeitos, eu diria, de nossa ação no mundo. Talvez seja por isso que eu tenha um amor tão grande pelas palavras e pela busca de uma expressão minha, singular — ao tempo em que admiro também a expressão única de cada pessoa que, na sua caminhada pela vida, vai traçando o fio do seu dizer. Digo fio porque em meio ao caudal de sentidos ou leituras possíveis que a vida nos apresenta o tempo inteiro, a trajetória pessoal não deixa de ser isso: um fiozinho, d`’agua talvez, a contribuir pro mar de possibilidades ou de criação que se traduz nisso que a gente chama viver. “Viver e não ter a vergonha de ser feliz”, como diz Gonzaguinha, um compositor popular. E eu, por minha vez, vim a me constituir numa compositora justamente pra isso: pra me dizer. Quando menor, menina, eu queria ser cantora. E, como toda menina da classe popular, achava que queria ser cantora pra ganhar dinheiro e ter sucesso. Isso o que eu pensava. E às vezes a gente acredita tanto no que pensa que passa a pensar que aquilo é verdade. Nesse sentido, eu comecei a trabalhar pra tornar o meu sonho realidade. Pedi a um ex-namorado que me ensinasse as primeiras notas — e ele foi o meu primeiro e único professor de violão. Nunca mais eu consegui ter mais nenhum. Por quê? Porque ele me ensinou o essencial: as primeiras notas — e eu, como aluna, aprendi o fundamental: a ir buscar o jeito de me expressar cantando. E nisso o tempo foi passando. A música foi se tornando, mais do que um trampolim pra o que quer que seja, num fim nela própria. Isso assustava um pouco as pessoas que me rodeavam. Até mesmo porque eu não vivia para cantar... e com o tempo até deixei de cantar para viver. Fui procurar outros meios de vida. Com a palavra escrita, por exemplo, fazendo o curso de Letras e criando e corrigindo, como já disse. Isso não combinava muito com a carreira, o sucesso, o dinheiro. Mas, engraçado, eu preferi ir traçando o meu fio assim. Como uma pessoa comum, como uma artista, mas dentro da vida do meu povo, do meu lugar, e com um amor profundo pela palavra, pela arte, pela expressão. Dessa maneira foi que me envolvi com vários grupos. Primeiro, como aluna, no Coral da UFC. Depois, como estudante e como profissional, no Um Canto em Cada Canto — do qual, quem esteve em outras palestras, já conheceu a Ângela e a Nininha, e deve já saber que se trata dos corais na periferia e no interior do Estado. Foi a minha primeira grande escola, em termos de me dizer. Sim, porque nada melhor do que grupo pra gente aprender a se dizer. O que nem sempre é fácil — às vezes chega a ser muito sofrido, algumas pessoas desistem, acham que é aquele grupo o culpado dela se sentir mal quando se expressa ou mesmo dela abdicar da expressão por não ser entendida... enfim. Mas eu afirmo: não há escola melhor do que um grupo, pra gente construir nosso jeito de expressão. Porque é aí que a gente tem que negociar, que ser flexível, que ser duro, às vezes, que ser compreensivo. É no grupo que a gente tem que criar os con-sensos. Quer dizer: combinar, respeitar o outro, lutar junto, sonhar junto, passar junto os momentos difíceis... Como eu já disse, muitos abdicam disso — e passam o resto das suas vidas dizendo as coisas mais valiosas apenas pelos corredores. Fundam e alimentam o que a gente chama de “rádio corredor”. Ou, traduzindo, desperdiçam todo o seu precioso tempo com fofocas. É como se a pessoa não acreditasse no poder da própria palavra, vocês não acham? É como se a gente achasse que a palavra do outro tem mais poder que a nossa — e já se desse de antemão por vencido. Daí, parte pras miudezas, como eu gosto de dizer. E usa como argumentos o fato de estarem fazendo o mesmo com a gente, falando da gente, desejando o mal da gente. Ou seja: se envenena no próprio pensamento. É ruim isso. Não produz coisa boa, não produz o bem, não nos impulsiona. No Um Canto em Cada Canto, à minha época, éramos 40 pessoas, com problemas de toda a natureza. Eu sofria na véspera de cada reunião, de cada evento, de cada negociação a ser feita com o grupo. Mas escutava minha grande amiga, Ângela, que me dizia: vai, Gigi, depois disso você nunca mais vai ser a mesma. Houve momentos em que eu quis fugir, ir embora, chutar o pau da barraca, como se diz — mas, sabem o que eu fazia? Escutava o que não queria e dizia o que achava que devia. Longe de me desvirtuar de mim mesma, fui aprendendo um outro trajeto das palavras. Um outro poder. Não o poder de manipular, não o não-poder de me esquivar, mas o poder do enfrentamento, da verdade e da força que as palavras têm quando são amparadas pela ação, pelo trabalho. A gente não tinha nada, no Canto, a não ser a força do trabalho e a alegria de sonhar juntos. Sonhamos espetáculos, canções, cenários, bonecos, projetos que começavam com a palavra de um somando-se à palavra de outro. Às vezes a gente esquece dessa coisa fundamental: nós somos seres de comunicação. Sem a comunicação nós minguamos, muchamos. E, fantástico, as palavras tanto têm a capacidade de transmitir significados muito concretos, comuns a todos — mesmo que com diferentes percepções, como quando, por exemplo, eu falo mesa ou cadeira ou caneta ou papel (e cada um imagina um objeto desses tal como a sua experiência os fez tomar contato com ele) —, como tem a propriedade de nos permitir imaginar, qualidade essencialmente humana. Pois bem. No Canto, quanto à minha expressão, eu aprendi que é possível sonhar juntos. Depois foi o tempo de sair e ir para outros grupos. Mais recentemente, no Instituto Terramar, vim aprender, a propósito de falar, que só eu poderia construir o meu lugar no grupo.  Por muito tempo reclamei e chorei e esperneei querendo que me reconhecessem pelo que eu fazia — mas sem me dizer. Era como se eu desejasse que todo mundo já soubesse o que eu era — até como se eu mesma soubesse disso assim, de uma vez, e não fosse isso uma construção. É um grupo também grande, o Terramar, mas não tão grande quanto o do Canto — e com uma força política e crítica muito grande entre os seus integrantes. Fui descobrindo, então, que eu tinha que disputar meu pensamento no meio dos iguais. E isso o que significava? Ter frio na barriga, gaguejar, mas não desistir de me colocar, de fazer perguntas, de dar opinião. Às vezes a gente diz a maior besteira. Outras vezes, acerta. Nalgumas nem uma coisa nem outra, mas contribui na construção de um pensamento... e por aí vai se constituindo como parte daquela luta, daquele grupo, daquele trabalho, daquela idéia, daquele sonho, daquela ação. E dessa maneira se torna parte daquilo. Acho que um dos grandes males do mundo moderno é que as pessoas não se vêm como parte das coisas das quais elas participam. É como se fosse como quando se diz: tanto faz como tanto fez. Ora, mesmo pra quem acredita que a vida é só esta e pronto, não seria o caso de aproveitar? De viver intensamente? De criar o mundo de maneira a se poder viver melhor nele? Fui descobrindo isso assim, aos pouquinhos, quase como uma lição dessas mais complexas. Descobri outro dia mesmo que o meu sonho de ser cantora era o sonho de me expressar. E que eu não precisava ir pra Xuxa ou pro Gugu pra me sentir artista. Não precisava sequer gravar disco pra me saber compositora. Eu componho... e pronto. Daí fui dar uma olhada no que eu componho, e é todo o testemunho de uma vida. De uma vida de aprendizagem disso que é falar, que é se dizer, se expressar. E por isso eu gostaria de compartilhar algumas dessas canções com vocês e depois, ou entre elas, escutar o que vocês também gostariam de compartilhar numa situação como esta, de troca de experiências, de aprendizado em comum. Agradecida.

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