segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

sobre trabalho interior (da série: contos de parar o tempo)

sempre quando me perguntam o que é que eu faço, em que trabalho, qual a minha profissão, dá-me um embaralhamento momentâneo, e algo como um cachorrinho que tinha no windows e aparecia quando se fazia uma pesquisa, dispara dentro de mim, procurando a resposta.
nunca soube o que dizer. mas por conveniência, claro, digo a coisa da vez. já foi professora, arte-educadora, assessora, escritora ― e mais recentente recuperei, por comodidade ou por vocação mesmo, o cantora/compositora. de fato ensino, de fato escrevo, de fato canto, de fato componho... mas é isso mesmo o que faço neste mundo?
grande parte do meu tempo, de uns tempos pra cá, tem sido utilizada justamente fazendo o que numa sociedade produtivista se considera... nada. não tenho carteira assinada, não tenho aposentadoria, quando os ganhos esparsos como tocadora e cantadeira (ou ainda como revisora ou escritora) não permitem, sequer pago todas as contas (já fui motivo de campanhas de solidariedade para fazer frente ao acúmulo de atrasos no aluguel ― pelo que sou imensamente grata às pessoas que compreenderam essa situação vexatória e, espero, transitória!), enfim, não há nenhum contexto de estabilidade que me permita fazer o que tenho feito: nada. mas é isso mesmo o que decidi ― e o que venho fazendo.
como parte desse nada incluo o ter voltado, depois do mestrado em educação, ao ensino técnico para aprender a ler música e aprofundar o estudo do violão ― para fazer jus ao título de cantora/compositora que toca e se acompanha e acompanha outrem. incluo também nesse nada o estudo da língua alemã ― nada fácil para quem é professora (formada, não de exercício) de francês mas a vida toda rejeitou o inglês.
no entanto, feminista que sempre fui (mesmo nunca tendo obtido a carteirinha...rs), não deixo de observar que esse nada é pleno de muitos algos. exemplo: não tenho faxineira. se quero a casa limpa, tenho que limpá-la. não tenho cozinheira: se quero comer, tenho que cozinhar. não tenho quem limpe o jardim e o quindim, não tenho quem conserte minhas tomadas, minhas torneiras quando quebram: então tenho que pagar para que alguém o faça ― o que implica trabalho extra para pagar essas contas. não planto, logo, tenho que comprar alimentos: trabalho extra pra comprar alimentos. e o pior: a casa onde vivo há quase 20 anos não me pertence, então aluguel, energia, água/esgoto e internet (que inclui o telefone fixo, muito bom pra quem fica em casa como eu e cuja telefonia celular é um horror dentro de casa, e os canais que pago por fora, porque com tudo o que [não] faço, e ermitãmente vivendo grande parte de minha vida na casa, é importante ter como ver algo [interessante] do mundo, a partir deles) ― tudo isso gera uma conta grande pra quem não (?)... trabalha.
daí eu dizia que sou feminista ― e que observo que tudo aquilo que posso fazer pelo fato de não trabalhar, não raro dá sustentação para o que as pessoas que trabalham fazem. exemplo: quando cozinho, quem está na minha casa pode comer uma boa comida; quando limpo a casa, as pessoas que desfrutam do espaço podem se sentir bem; quando lavo a roupa, as pessoas que saem para trabalhar podem abrir o guarda-roupa, tirar uma roupa, jogar outra no cesto de roupas sujas (ô felicidade, pois na maior parte elas são jogadas por todo canto) ― e sair, ou não, pra trabalhar.
e como faço nada, às vezes também sou requisitada pra ficar com meu neto. não é sempre, mas sou. gosto muito de ficar com ele, porque aí esse nada que faço se enche como nunca de sentido, porque pra ficar com um pequeno que te requisita o tempo todo, só fazendo nada ― e muito bem! (rs)
no entanto, desde que escutei esse como que chamado interior pra em vez de continuar na loucura de correr atrás daquilo que nunca se alcança (dinheiro, por exemplo, pois por mais que se o tenha nunca é suficiente), investir (palavra do campo do capital - rs) em mim, quase que enlouqueço (porque mais difícil que continuar na sandice é pará-la), mas há momentos em que deito e acordo simplesmente em paz.
pode parecer pouco, porém sempre tive como companheiro ou companheira o medo e/ou uma sensação de medo ― do quê nem eu mesma sei, muito embora possa enumerar uns duzentos mil, que era como um encosto, que eu carregava sem me dar conta só porque tinha que dar conta sempre de tudo quanto se espera que você dê conta: as contas, as datas festivas, as comemorações, os lutos, os empregos, os trabalhos todos que lhe vêm ao encontro quase como um imã de geladeira. parei. não de uma vez, que ninguém em pura consciência é capaz de viver a própria loucura assim de vez. mas parei. e de vez em quando tenho que parar de novo, pra mesmo em meio ao nada não ir acumulando de novo o anseio de dar conta de tudo que se vai erigindo mesmo quando a gente vai jogando fora todas as tralhas, todos os lixos que acumulou por anos a fio achando que esse tudo era de uma necessidade vital.
e nisso, como diz clarice no “o ovo e a galinha”, aquilo que parece desimportante vai se fazendo pouco a pouco: o trabalho interior ― que ninguém, nem que queira, vai poder nunca fazer por mim. nunca me disseram, em canto algum, que havia esse tipo de trabalho a fazer. nunca: cursei jardim, primeiro segundo terceiro quarto ano, quinta sexta sétima oitava séries, primeiro segundo e terceiro científico, passei 10 anos sem estudar e depois fiz vestibular pras mesmas coisas que com 17 anos e passei pra música e letras, levei mais quase outros 10 anos pra terminar letras, depois fiz especialização, mestrado, agora voltei pro ensino técnico ― e ninguém nunca me disse que tinha esse trabalho interior.
então resolvi ser autônoma. se as promessas todas de melhoria que me fizeram ao longo da vida inteira (estude pra isso, praquilo, pra ser gente, pra melhorar de vida...) falharam sucessivamente, e ao meu redor eu cada vez mais via os campos devastados da alma humana, só me restava a autonomia. com ela eu faço o que quero ― melhor: o que devo. eu faço nada. eu arrumo a casa e sento e olho o que arrumei. eu faço a comida lentamente, como se meu estômago não ardesse em fome, pela certeza de que a comida que faço me fará bem ― e sobretudo porque eu tenho a paciência de me esperar. eu lavo e estendo as roupas de todos como se fossem minhas ― e sou feliz vendo as cores misturarem-se, vendo os passarinhos pousarem na figueira e se deliciarem com os figos maduros que eu não colho só para os ver comer. eu dou banana pros soins quando eles aparecem ― e de tanto os alimentar, já não temos, ambos, medo uns dos outros: nem eu deles (ai, eles transmitem raiva...), nem eles de mim, pois sabem que minha mão só leva a banana até o lugar onde eles se encontram e depois se retira.
conheço todos os pregões e sons que passam pela rua: o sino do caminhão do gás, o sino do vendedor de picolés, o cláudio que todo dia grita ― oooooolha o verdureiro! ― e chega trazendo maravilhas do mercado são sebastião: acerola, manga, mamão, cheiro verde, pimentinha, pimentão, cebola, tomate, batata doce, às vezes até siriguela, capim santo (só nunca trouxe pitomba, do que o pequeno diz gostar...) ― e a um preço que eu me pergunto sempre como é que ele consegue tirar algum lucro... ―, o carro que vende produtos de limpeza, o outro que vende laranjas e abacaxis, o moço que afia facas e tesouras e cola tudo o que precisar de cola, enfim: conheço todos.
conheço todos os mendigos, andarilhos, bêbados, testemunhas de jeová, transeuntes que nunca sabem onde encontrar os números que procuram (achar um endereço na tianguá é mais difícil que ganhar na megasena!, pois a numeração [dupla de cada casa] se repete em determinados trechos, gerando uma confusão das melhores!) ― só (quase) nunca lembro os nomes das ruas que ladeiam minha casa nem de um lado nem de outro. acho que resolvi não aprender pra poder ter sempre com o que me surpreender, ao me deixar ficar num mesmo local por quase 20 anos, eu que nunca, em meus quase 55, parei mais do que 3 anos em qualquer território.
é isso. quem nada faz muito faz. espero viver mais pra poder ser útil como tenho me tornado desde que resolvi fazer nada. apesar da sensação que dá quando as contas não se pagam de que é como se a gente houvesse “fracassado”, nunca fui tão feliz! só tenho o essencial ― esse me basta. o mais, é essa urdidura interior, que quanto mais tempo tenho pra ela, mais tempo tenho que ter. oxalá assim seja! 
(e agora, quando me perguntarem o que é que eu faço, digo: autônoma!)

domingo, 7 de janeiro de 2018

dia de reis (da série: contos de parar o tempo)

O que vale mais: a coisa ou a representação que a coisa nos provoca?
Não sei. Creio que depende muito do momento.
Quando se trata da infância, no entanto, toda representação é tão (ou mais) importante que a própria coisa. E assim tem sido com plantar nos netos (diria mais: no neto, que a pequena ainda está se aproximando) isso dos ritos. O rito de despertar, de olhar o próprio cocô, o rito de banhar-se, de escovar os dentes, de comemorar mas também de se recolher, o rito da leitura (de verdade ou de cabeça, pouco importa) antes de dormir, o rito de cantar e acalentar, o rito de cozinhar e comer, de se admirar das coisas bonitas, de reparar na natureza, de ver mas também de não só ver as imagens que já vêm prontas (televisão, vídeos, celulares, computadores), enfim.
E no meio desses ritos todos, o rito de quando chega e quando parte o Natal. Neste Natal, o pequeno, ao ver esperando por ele a caixa com os enfeites e a árvore que devia ser decorada, montou sozinho a árvore, inclusive ligando-a na eletricidade. O que 5 anos já não fazem num ser humano!
Pois. E agora, chegado janeiro e chegado o dia 6, combinei com ele de desmontar, também de forma ritualística, a árvore. O mais lindo foi que quando não dava mais pra adiar esse momento, ele, como eu, se emocionou e abraçou a árvore nua (nossa árvore lembra mais as do semiárido que os pinheiros mais comumente eleitos pra essa época) e dizia: eu gosto tanto dessa árvore!!! Ri e fiquei feliz com isso, porque para mim os dois meses em que as luzinhas da árvore iluminam nosso cotidiano (que coincidem com as luzes que o cristal tocado pelo sol também espalha pela casa) são uma graça por si só e ver o pequeno dar-se conta de que algo muda com esse apagar-se momentâneo, é já também uma outra graça.
Há quem ache tudo isso uma bobagem, uma besteira e eu respeito, guardada a distância necessária entre esse modo duro de lidar com os ciclos e os que eu cultivo. Só penso em quanto não se perde ao não se alimentar nas crianças o sentimento de reverência pelos mistérios. Porque é um mistério (e grande) o Sol girar de modo a, em determinada época do ano, lançar luz dentro da minha casa e essa luz se espalhar de maneira multicolorida pelos móveis, paredes, pessoas... Como é um mistério o ter havido pessoas, os reis magos, que seguiram uma estrela e deram com um menino numa manjedoura, menino esse aguardado por milênios e cuja passagem por este planeta até hoje não compreendemos, de fato.

O que sei é que, tanto quanto possa, eu planto nos pequenos que me rodeiam esse estado de con.sideração ou seja, de acolher o que o Cosmos nos manda e que a cada ciclo temos a oportunidade de renovar, como quem cultiva uma semente e a rega e a cuida e a vê crescer, até que um dia ela amadureça e dê frutos, e novas sementes e assim siga até enquanto o mundo puder ser.

consigna de 2018 (da série: é preciso!)

"por convicção e amor 
quero fazer o que faço
e deixar de fazer
o que deixo de fazer.

ao medo quero 
arrancar o domínio
e dá-lo
ao Amor.

(e quero crer no
reino que há em mim!)"

(rudolf steiner)