sempre
quando me perguntam o que é que eu faço, em que trabalho, qual a
minha profissão, dá-me um embaralhamento momentâneo, e algo como
um cachorrinho que tinha no windows e aparecia quando se fazia
uma pesquisa, dispara dentro de mim, procurando a resposta.
nunca
soube o que dizer. mas por conveniência, claro, digo a coisa
da vez. já foi professora, arte-educadora, assessora, escritora ―
e mais recentente recuperei, por comodidade ou por vocação mesmo, o
cantora/compositora. de fato ensino, de fato escrevo, de fato canto,
de fato componho... mas é isso mesmo o que faço neste mundo?
grande
parte do meu tempo, de uns tempos pra cá, tem sido utilizada
justamente fazendo o que numa sociedade produtivista se considera...
nada. não tenho carteira assinada, não tenho aposentadoria,
quando os ganhos esparsos como tocadora e cantadeira (ou ainda como
revisora ou escritora) não permitem, sequer pago todas as contas (já
fui motivo de campanhas de solidariedade para fazer frente ao acúmulo
de atrasos no aluguel ― pelo que sou imensamente grata às pessoas que compreenderam essa situação vexatória e, espero, transitória!), enfim, não
há nenhum contexto de estabilidade que me permita fazer o que tenho
feito: nada. mas é isso mesmo o que decidi ― e o que venho
fazendo.
como
parte desse nada incluo o ter voltado, depois do mestrado em
educação, ao ensino técnico para aprender a ler música e
aprofundar o estudo do violão ― para fazer jus ao título de
cantora/compositora que toca e se acompanha e acompanha outrem.
incluo também nesse nada o estudo da língua alemã ― nada
fácil para quem é professora (formada, não de exercício) de
francês mas a vida toda rejeitou o inglês.
no
entanto, feminista que sempre fui (mesmo nunca tendo obtido a
carteirinha...rs), não deixo de observar que esse nada é
pleno de muitos algos. exemplo: não tenho faxineira. se quero a casa
limpa, tenho que limpá-la. não tenho cozinheira: se quero comer,
tenho que cozinhar. não tenho quem limpe o jardim e o quindim,
não tenho quem conserte minhas tomadas, minhas torneiras quando
quebram: então tenho que pagar para que alguém o faça ― o que
implica trabalho extra para pagar essas contas. não planto,
logo, tenho que comprar alimentos: trabalho extra pra comprar
alimentos. e o pior: a casa onde vivo há quase 20 anos não me
pertence, então aluguel, energia, água/esgoto e internet (que
inclui o telefone fixo, muito bom pra quem fica em casa como eu e
cuja telefonia celular é um horror dentro de casa, e os canais que
pago por fora, porque com tudo o que [não] faço, e ermitãmente
vivendo grande parte de minha vida na casa, é importante ter como
ver algo [interessante] do mundo, a partir deles) ― tudo
isso gera uma conta grande pra quem não (?)... trabalha.
daí
eu dizia que sou feminista ― e que observo que tudo aquilo que
posso fazer pelo fato de não trabalhar, não raro dá sustentação
para o que as pessoas que trabalham fazem. exemplo: quando cozinho,
quem está na minha casa pode comer uma boa comida; quando limpo a
casa, as pessoas que desfrutam do espaço podem se sentir bem; quando
lavo a roupa, as pessoas que saem para trabalhar podem abrir o
guarda-roupa, tirar uma roupa, jogar outra no cesto de roupas sujas
(ô felicidade, pois na maior parte elas são jogadas por todo canto)
― e sair, ou não, pra trabalhar.
e
como faço nada, às vezes também sou requisitada pra ficar
com meu neto. não é sempre, mas sou. gosto muito de ficar com ele,
porque aí esse nada que faço se enche como nunca de sentido,
porque pra ficar com um pequeno que te requisita o tempo todo, só
fazendo nada ― e muito bem! (rs)
no
entanto, desde que escutei esse como que chamado interior
pra em vez de continuar na loucura de correr atrás daquilo que nunca
se alcança (dinheiro, por exemplo, pois por mais que se o tenha
nunca é suficiente), investir (palavra do campo do capital - rs) em
mim, quase que enlouqueço (porque mais difícil que continuar na
sandice é pará-la), mas há momentos em que deito e acordo
simplesmente em paz.
pode
parecer pouco, porém sempre tive como companheiro ou companheira o
medo e/ou uma sensação de medo ― do quê nem eu mesma sei, muito
embora possa enumerar uns duzentos mil, que era como um encosto,
que eu carregava sem me dar conta só porque tinha que dar conta
sempre de tudo quanto se espera que você dê conta: as contas, as
datas festivas, as comemorações, os lutos, os empregos, os
trabalhos todos que lhe vêm ao encontro quase como um imã de
geladeira. parei. não de uma vez, que ninguém em pura consciência
é capaz de viver a própria loucura assim de vez. mas parei. e de
vez em quando tenho que parar de novo, pra mesmo em meio ao nada
não ir acumulando de novo o anseio de dar conta de tudo que se vai
erigindo mesmo quando a gente vai jogando fora todas as tralhas,
todos os lixos que acumulou por anos a fio achando que esse tudo
era de uma necessidade vital.
e
nisso, como diz clarice no “o ovo e a galinha”, aquilo que parece
desimportante vai se fazendo pouco a pouco: o trabalho interior ―
que ninguém, nem que queira, vai poder nunca fazer por mim. nunca me
disseram, em canto algum, que havia esse tipo de trabalho a fazer.
nunca: cursei jardim, primeiro segundo terceiro quarto ano, quinta
sexta sétima oitava séries, primeiro segundo e terceiro científico,
passei 10 anos sem estudar e depois fiz vestibular pras mesmas coisas
que com 17 anos e passei pra música e letras, levei mais quase
outros 10 anos pra terminar letras, depois fiz especialização,
mestrado, agora voltei pro ensino técnico ― e ninguém nunca me
disse que tinha esse trabalho interior.
então
resolvi ser autônoma. se as promessas todas de melhoria que me
fizeram ao longo da vida inteira (estude pra isso, praquilo,
pra ser gente, pra melhorar de vida...) falharam
sucessivamente, e ao meu redor eu cada vez mais via os campos
devastados da alma humana, só me restava a autonomia. com ela eu
faço o que quero ― melhor: o que devo. eu faço nada. eu
arrumo a casa e sento e olho o que arrumei. eu faço a comida
lentamente, como se meu estômago não ardesse em fome, pela certeza
de que a comida que faço me fará bem ― e sobretudo porque eu
tenho a paciência de me esperar. eu lavo e estendo as roupas
de todos como se fossem minhas ― e sou feliz vendo as cores
misturarem-se, vendo os passarinhos pousarem na figueira e se
deliciarem com os figos maduros que eu não colho só para os ver
comer. eu dou banana pros soins quando eles aparecem ― e de tanto
os alimentar, já não temos, ambos, medo uns dos outros: nem eu
deles (ai, eles transmitem raiva...), nem eles de mim, pois
sabem que minha mão só leva a banana até o lugar onde eles se
encontram e depois se retira.
conheço
todos os pregões e sons que passam pela rua: o sino do caminhão do
gás, o sino do vendedor de picolés, o cláudio que todo dia grita ―
oooooolha o verdureiro! ― e chega trazendo maravilhas do
mercado são sebastião: acerola, manga, mamão, cheiro verde,
pimentinha, pimentão, cebola, tomate, batata doce, às vezes até
siriguela, capim santo (só nunca trouxe pitomba, do que o pequeno
diz gostar...) ― e a um preço que eu me pergunto sempre como é
que ele consegue tirar algum lucro... ―, o carro que vende produtos
de limpeza, o outro que vende laranjas e abacaxis, o moço que afia
facas e tesouras e cola tudo o que precisar de cola, enfim: conheço
todos.
conheço
todos os mendigos, andarilhos, bêbados, testemunhas de jeová,
transeuntes que nunca sabem onde encontrar os números que procuram
(achar um endereço na tianguá é mais difícil que ganhar na
megasena!, pois a numeração [dupla de cada casa] se repete em
determinados trechos, gerando uma confusão das melhores!) ― só
(quase) nunca lembro os nomes das ruas que ladeiam minha casa nem de
um lado nem de outro. acho que resolvi não aprender pra poder ter
sempre com o que me surpreender, ao me deixar ficar num mesmo local
por quase 20 anos, eu que nunca, em meus quase 55, parei mais do que
3 anos em qualquer território.
é
isso. quem nada faz muito faz. espero viver mais pra poder ser útil
como tenho me tornado desde que resolvi fazer nada. apesar da
sensação que dá quando as contas não se pagam de que é como se a
gente houvesse “fracassado”, nunca fui tão feliz! só tenho o
essencial ― esse me basta. o mais, é essa urdidura interior, que
quanto mais tempo tenho pra ela, mais tempo tenho que ter. oxalá
assim seja!
(e agora, quando me perguntarem o que é que eu faço, digo: autônoma!)