quinta-feira, 26 de março de 2020

2m x 2m [dois por dois] (da série: quando os deuses nos dão folga)




já fui bastante “solta” no mundo

em nenhum lugar parava muito tempo

depois vieram renovados ventos

e num lugar um mergulho profundo



um dia, foi a despedida

desse lugar tive que sair

foi chorar, sofrer, pedra que sente o cair

e então ressignificar o que são chegadas e saídas…



hoje estou num 2m x 2m

que a princípio pareceu minúsculo

ele de fato era ou eu não tinha músculo

pra compreender a esfera que vem depois do depois?…



não sei. quem saberá?

sei é que o mundo todo cabe aqui:

o trabalho, a espiritualidade, a música, a família, as amizades, o amor, o ki

— e infinito que houver, onde eu estiver, caberá!





(Da casinha da Vila,
em meio a sei-lá-que-dia de quarentena,
aos 25.março.2020)

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

da delicadeza (da série: é preciso coragem coragem coragem!)



o que dizer?
quando dizer?
como dizer?
o que é ser?

o que manter?
o que ceder?
o que poder?
o que é ter?

como na linguagem,
nem tudo que parece ser, é.
é preciso coragem
pra saber ler o que não está sendo dito, mas se quer ―

que a delicadeza do beija-flor
não é que a flor lhe peça o beijo:
ele o dá apenas, por amor!

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

mu.danças (da série: é preciso ter coragem de ser feliz)



a vida é uma roda que não pára:
outro dia ainda eu falava da vizinha que mudou,
da tristeza que causou,
e agora eu sou quem se des.lo[u]cou!...
o mundo - que era a casa/a rua/o bairro/a comunidade dentro 
e em volta até então,
o mundo parece sem chão,
apesar do chão sob o qual está o meu colchão
nessa que é minha nova morada.

são outras as paisagens,
é outra a vizinhança.
serei eu a mesma?
como ter essa ou qualquer outra certeza?…

faço uso, então,
das memórias que trago em mim
qual fogo vivo
(e do que se forja
sem nem ter forma ainda)!

e se o presente queima
pondo em brasa o que até há pouco
era o que eu tinha como certo,
sigo sem saber pra onde
(o futuro aos deuses pertence?)
mas com o porto perto
onde o coração
se ampare
ou
desponte
:
confiante no que sinto
tendo como par o destino
nessa onda de mu.danças!

(chez meu pai/casinha da vila)
consigna de 2020

"O livre-arbítrio é a capacidade de fazer com alegria aquilo que eu devo fazer."
(C.G.Jung)

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

da falta que a vizinha faz (da série: boa vizinhança)

… e amanheceu sem o som do liquidificador. 
e sem o som das vozes, e sem o som do motor. 
e sem o som do silêncio que ficava depois de toda a casa acordada sair. 
e sem a possibilidade de dizer: renatinhabielgael!benjaminmarcos!… 
tudo isso deixa na gente um imenso vácuo! 
foram tantos anos juntos que a gente parecia um grande conjunto 
― e agora faltam muitas presenças!… 
acho que por isso até adoeci, tentando elaborar essa ausência. 
acho que por isso até entristeci, mesmo sabendo que a lei da vida é a impermanência. 
porque é muito bom saber que num mundo tão fragmentado, 
a gente pode contar com a vizinhança do lado! 
e ver os meninos e meninas, filhos ou netos,
todos/as nascendo e crescendo num ambiente de afeto! 
ê mundo grande! 
ê vida! 
agora é tocar pra frente, que continua a lida! 
e “o que não voga é a preguiça de ser feliz, ou pelo menos tentar se encantar”, 
sabendo que a tianguá pode ser aqui e/ou em qualquer outro lugar! 
bien sûr!

terça-feira, 17 de setembro de 2019

De bom humor! (da série: gratidão!)

Vovó que eu mais amo!…aquilo ficou soando na minha cabeça, porque dito sem que eu esperasse. Sim, porque quando digo que tem que tomar o xarope de beterraba ou a água de limão com alho, ou que tem que comer uma fruta, ou que é hora do banho, hora de dormir, hora de acordar, hora de parar... vixe! Eu sou a bruxaimpiedosachata― e por aí vai! Mas quando já está tomado banho, depois de um dia intenso, e já se alimentou de tudo o que foi possível negociar entre o desejado e o necessário, quando já o quarto se apronta para recebê-lo às vezes com o pai, na maior parte com a mãe, às vezes comigo mesma e o cenário é o de um conto (de fadas e não raro bem cruel, como o são os de Grimm originais) ou de uma música tocada ao violão (que ele pede cantada e eu faço, à sua distração por vezes, instrumental), aí é como se o anjo invocado na reza (meu anjo da guarda/meu bom guardador/guardai minha alma/pra nosso senhor/menino jesus cristinho/rogai por nós, amém) de fato acorresse ― e o menino se transformasse e me surpreendesse com esse: Vovó que eu mais amo! Nada que me iluda, pois a vó mais amada é sempre a que está mais perto, mas em meio a tanta agrura de que se tem notícia em tempos sombrios, eu rio e agradeço e reverencio o que o gesto e a fala me indicam: os deuses (e as deusas!) estão de bom humor! Evoé!

domingo, 26 de agosto de 2018

um recado dos céus (da série: nossa reverência à infância)

ontem o pequeno extrapolou todas as peripécias: pendurou-se no cabo da vassoura, suspensa que estava de cabeca para baixo sobre duas armações de ferro arqueadas para cima que servem para esse fim, e caiu de cabeça. estando eu e sua mãe a terminar os preparativos para o almoço, com a mesa posta só aguardando que nos sentássemos para a lauta ceia preparada, ouve-se o tombo. não foi barulho pouco: até a vizinha, soubemos depois, ouviu. a mãe querendo, penso, com isso acalmar-se — e tendo em vista o histórico cotidiano de travessuras do pequeno —, disse: deixa, ele está como sempre chamando atenção, quando ato-contínuo ao barulho da queda seguiu-se o do choro. eu não tive dúvidas, nem diante das certezas da mãe: a coisa fora séria! ele me abraçou sabendo que comigo teria guarida a sua dor, uma vez que os cuidados maternos mesmo sendo verdadeiros e desvelados, a ele impunham limites quando o caso era danação. peguei uma bolsa de gelo e coloquei, perguntando como se dera aquilo. fomos ao local do feito: o corredor da casa. quando peguei o cabo estrompado pelo peso do menino, vi que o calombo na cabeça era pouca coisa diante da traquinice. ao tempo em que constato a gravidade da situação, ele já com a bolsa de gelo nas mãos, grita: vovó, isso é sangue? pois não é que era! a mãe não demonstrou abalo mas partiu pro celular, saber onde o pai se encontrava, enquanto eu procurava temerosa os vestígios do que parecia anunciar uma tragédia — ao menos para o menino. quando olhei e disse: preto, cortou, e está saindo sangue, me deixe limpar, ele começou com o interminável jogo de negociação que a tudo impõe quando se trata dele mesmo: ah, não, se for arder!…eu disse que seria apenas água oxigenada, para limpar e podermos ver direito o efeito da queda. mas nisso o pescoço do menino estava todo ensopado de vermelho e eu chamava a única na casa, naquele momento, que das presentes poderia fazer um diagnóstico mais razoável: uma taurina. ele, sempre que se aludia ao fato de ter que ir ao hospital, urrava de nervoso — e num dos gritos, pensei: quem ouvir, há de achar que nós é que o estamos maltratando… o diagnóstico taurino, porém, foi taxativo: há um corte que precisa ser suturado e é preciso ver se não há outras consequências. o menino, nessa hora, com uma mão segurando o algodão sobre o corte para que o sangue estancasse (que mão ele só permitia a dele mesmo), se abraçou com a outra comigo, implorando: por favor, vovó! eu não quero ir! vai doer! quando, no entanto, ficou nítido que não haveria saída, ele a si mesmo instou: por que é que eu fui fazer isso? — o que me chegou como uma reflexão profunda, diante de quem costumeiramente parece não avaliar o grau de suas intervenções. o pai, que vinha com a namorada para o almoço, mal teve tempo de entrar, se espantar com o sangue e seguir com ele, a mãe e a namorada para o hospital. a cena toda parecia estar chegando a termo, mas com o casal viera uma outra pequena — que quando viu que o irmão, o pai e as mães da vez todos iriam sair, abriu o berro. eu olhei pra taurina e pensei: ainda não é o fim. levou uns dois minutos até acalmá-la e decidirmo-nos por sentarmo-nos à mesa. a refeição, conquanto esperada, parecia não ter o mesmo gosto que se adivinhava antes da travessura, porque o menino nos monopolizava tanto que até sua ausência funcionava como uma presença. decidida, porém, depois de todo esse rebuliço, a aproveitar que há pai e mãe e madrasta no mundo e que a função-hospital decididamente não me cabia, recomecei o processo de encantamento pelo que estava à minha volta: a comida, a companhia, a pequena que já se entretia com os brinquedos que trazia e os do irmão – até que ele volta, sorriso ainda mais farto do que antes da queda, e exibe, como um troféu, o enfaixe em torno do corte (costurado!) e a frase: vovó, nem doeu! a mãe, por sua vez, dizia: esse menino parece que 'tá mais feliz com essa cabeça ponteada! a madrasta, narrava o pai divertido, ao fim e ao cabo foi quem de fato acompanhou o menino na consulta (o que surpreendeu, pelo grau de modernidade, até o segurança do hospital, já que só era permitido uma acompanhante). esta, por sua vez, contava que enquanto segurava a mão do pequeno diante dos seus pedidos, mudos e expressos, de socorro, garantiu-lhe que toda a dor que ele iria sentir com os pontos seria parecida com uma picada de formiga quando da anestesia, no que ele quis crer – e assim foi (conta a lenda que uma lágrima caiu quando essa parte da história ocorreu...)! 
a essa altura dos acontecimentos e das narrativas, tendo-o novamente saracoteando em torno de nós que pudéramos almoçar e fazíamos a digestão no quindim, cantamos: "sambataotao tá doente, tá com a cabeça quebrada…" — com o que ele se divertia e ria a valer, retrucando: foram só dois pontinhos!!! só dois pontinhos!!! 
quanto a mim, tão extasiada quanto extenuada, agradeci aos deuses e deusas existir um ser assim tão pleno de energia  e compreendi o que o Steiner diz sobre ser possível ver na danação de um menino um recado dos céus
  
(agradeço o registro feito pela madrasta do momento mágico da lágrima)