... e todo dia, ao chegar, o fusca no mesmo lugar.
A simples imagem do carro parado
ali, na entrada da sua rua, atiça muitas inquietações.
Quem deixaria um carro parado? E
por que na sua rua?
Haveria, por acaso, a intenção de
dizer: oi, eu existo, não esqueça de mim...? — ou seria pura
displicência?
À falta de quem lhe responda,
ela simplesmente olha o fusca.
Chegou a memorizar sua placa.
Ocorreu-lhe mesmo fazer cálculos numerológicos: o resultado final deu quatro.
Quatro, quadrado, rigidez.
O que dizer de relações onde o quatro
impera? Talvez nada, apenas esperar passar tudo aquilo que avulta como uma
tempestade que se prepara silenciosamente a partir de um vento leve, de nuvens
que se formam, de formigas que mudam seu caminho — e um dia desaba sobre sua
cabeça, seus ombros, sua pélvis, seus membros sem nenhum aviso.
Mas e o fusca? Parado.
Provavelmente nem mesmo as pessoas que tiram de outras seus pertences se
interessam por ele. Mais provável é que seja mesmo um recado.
Qual?
Essa uma inquietação.
Atrás dessa, todas as outras que
avultam todos os dias como um relógio que marca.
A falta sentida do que faz sentido
ao ler-se o que assoma à visão do fusca ainda não chega com nitidez à
consciência. Mas está ali, todos os dias, tão logo saia ou tão logo chegue. Às
vezes adia o retorno à casa. Às vezes pensa: será que ainda vai estar lá? Às
vezes acorda de noite e vai olhar se ninguém o levou.
Todas as inquietações, porém, não o
tiram do lugar. O recado está dado: leia quem puder.
E enquanto não pode, que tal
perdoar?
Não o fusca, não seu dono: a si
mesma.
Porque por mais esforço que faça,
resposta nenhuma virá de fora.
De fora, só o fusca, parado.
De fora, só a chuva, a brisa, o
sol, a noite enluarada, a época de mangas, as siriguelas que colorem com seu
sabor a vida nem sempre saborosa.
Sabor. Saber. Sabedoria.
Talvez se se perdoar, chegue à
razão de ser daquele fusca na sua rua, plenamente parado, plenamente inerte,
plenamente exposto em proporção contrária como nada do que gerou esse fato.
E por isso mesmo, o perdão!
Do que se sabe e do que não se
sabe.
E o perdão de si, que é de todos o
mais difícil.
Teria ela essa capacidade?
Não sabia. Mas ei-la a procurar
palavras pra dizer ao [dono do?] fusca: fique à vontade! Hoje, como sempre, fique à
vontade!
E depois de liberar-se de si e do
que a ata ao fusca, quem sabe escrever outra história. Uma história onde os
medos, os descasos, as pequenas violências cotidianas cedem à luz que ela vai abrindo a fórceps nos caminhos de sua alma. Branca.
Sua alma branca, como seu corpo é preto, não por racismo ou negação da raça.
Branca porque é a cor do fusca, na qual inscreve, a partir de então, uma nova
história. A sua.
maria gigi Tubiba
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