segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

da série: é preciso perdoar como se não houvesse amanhã

 ... e todo dia, ao chegar, o fusca no mesmo lugar.

A simples imagem do carro parado ali, na entrada da sua rua, atiça muitas inquietações.

Quem deixaria um carro parado? E por que na sua rua?

Haveria, por acaso, a intenção de dizer: oi, eu existo, não esqueça de mim...? — ou seria pura displicência?

À falta de quem lhe responda, ela simplesmente olha o fusca.

Chegou a memorizar sua placa. Ocorreu-lhe mesmo fazer cálculos numerológicos: o resultado final deu quatro.

Quatro, quadrado, rigidez.

O que dizer de relações onde o quatro impera? Talvez nada, apenas esperar passar tudo aquilo que avulta como uma tempestade que se prepara silenciosamente a partir de um vento leve, de nuvens que se formam, de formigas que mudam seu caminho — e um dia desaba sobre sua cabeça, seus ombros, sua pélvis, seus membros sem nenhum aviso.

Mas e o fusca? Parado. Provavelmente nem mesmo as pessoas que tiram de outras seus pertences se interessam por ele. Mais provável é que seja mesmo um recado.

Qual?

Essa uma inquietação.

Atrás dessa, todas as outras que avultam todos os dias como um relógio que marca.

A falta sentida do que faz sentido ao ler-se o que assoma à visão do fusca ainda não chega com nitidez à consciência. Mas está ali, todos os dias, tão logo saia ou tão logo chegue. Às vezes adia o retorno à casa. Às vezes pensa: será que ainda vai estar lá? Às vezes acorda de noite e vai olhar se ninguém o levou.

Todas as inquietações, porém, não o tiram do lugar. O recado está dado: leia quem puder.

E enquanto não pode, que tal perdoar?

Não o fusca, não seu dono: a si mesma.

Porque por mais esforço que faça, resposta nenhuma virá de fora.

De fora, só o fusca, parado.

De fora, só a chuva, a brisa, o sol, a noite enluarada, a época de mangas, as siriguelas que colorem com seu sabor a vida nem sempre saborosa.

Sabor. Saber. Sabedoria.

Talvez se se perdoar, chegue à razão de ser daquele fusca na sua rua, plenamente parado, plenamente inerte, plenamente exposto em proporção contrária como nada do que gerou esse fato.

E por isso mesmo, o perdão!

Do que se sabe e do que não se sabe.

E o perdão de si, que é de todos o mais difícil.

Teria ela essa capacidade?

Não sabia. Mas ei-la a procurar palavras pra dizer ao [dono do?] fusca: fique à vontade! Hoje, como sempre, fique à vontade!

E depois de liberar-se de si e do que a ata ao fusca, quem sabe escrever outra história. Uma história onde os medos, os descasos, as pequenas violências cotidianas cedem à luz que ela vai abrindo a fórceps nos caminhos de sua alma. Branca. Sua alma branca, como seu corpo é preto, não por racismo ou negação da raça. Branca porque é a cor do fusca, na qual inscreve, a partir de então, uma nova história. A sua.

 

maria gigi Tubiba 

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