domingo, 26 de agosto de 2018

um recado dos céus (da série: nossa reverência à infância)

ontem o pequeno extrapolou todas as peripécias: pendurou-se no cabo da vassoura, suspensa que estava de cabeca para baixo sobre duas armações de ferro arqueadas para cima que servem para esse fim, e caiu de cabeça. estando eu e sua mãe a terminar os preparativos para o almoço, com a mesa posta só aguardando que nos sentássemos para a lauta ceia preparada, ouve-se o tombo. não foi barulho pouco: até a vizinha, soubemos depois, ouviu. a mãe querendo, penso, com isso acalmar-se — e tendo em vista o histórico cotidiano de travessuras do pequeno —, disse: deixa, ele está como sempre chamando atenção, quando ato-contínuo ao barulho da queda seguiu-se o do choro. eu não tive dúvidas, nem diante das certezas da mãe: a coisa fora séria! ele me abraçou sabendo que comigo teria guarida a sua dor, uma vez que os cuidados maternos mesmo sendo verdadeiros e desvelados, a ele impunham limites quando o caso era danação. peguei uma bolsa de gelo e coloquei, perguntando como se dera aquilo. fomos ao local do feito: o corredor da casa. quando peguei o cabo estrompado pelo peso do menino, vi que o calombo na cabeça era pouca coisa diante da traquinice. ao tempo em que constato a gravidade da situação, ele já com a bolsa de gelo nas mãos, grita: vovó, isso é sangue? pois não é que era! a mãe não demonstrou abalo mas partiu pro celular, saber onde o pai se encontrava, enquanto eu procurava temerosa os vestígios do que parecia anunciar uma tragédia — ao menos para o menino. quando olhei e disse: preto, cortou, e está saindo sangue, me deixe limpar, ele começou com o interminável jogo de negociação que a tudo impõe quando se trata dele mesmo: ah, não, se for arder!…eu disse que seria apenas água oxigenada, para limpar e podermos ver direito o efeito da queda. mas nisso o pescoço do menino estava todo ensopado de vermelho e eu chamava a única na casa, naquele momento, que das presentes poderia fazer um diagnóstico mais razoável: uma taurina. ele, sempre que se aludia ao fato de ter que ir ao hospital, urrava de nervoso — e num dos gritos, pensei: quem ouvir, há de achar que nós é que o estamos maltratando… o diagnóstico taurino, porém, foi taxativo: há um corte que precisa ser suturado e é preciso ver se não há outras consequências. o menino, nessa hora, com uma mão segurando o algodão sobre o corte para que o sangue estancasse (que mão ele só permitia a dele mesmo), se abraçou com a outra comigo, implorando: por favor, vovó! eu não quero ir! vai doer! quando, no entanto, ficou nítido que não haveria saída, ele a si mesmo instou: por que é que eu fui fazer isso? — o que me chegou como uma reflexão profunda, diante de quem costumeiramente parece não avaliar o grau de suas intervenções. o pai, que vinha com a namorada para o almoço, mal teve tempo de entrar, se espantar com o sangue e seguir com ele, a mãe e a namorada para o hospital. a cena toda parecia estar chegando a termo, mas com o casal viera uma outra pequena — que quando viu que o irmão, o pai e as mães da vez todos iriam sair, abriu o berro. eu olhei pra taurina e pensei: ainda não é o fim. levou uns dois minutos até acalmá-la e decidirmo-nos por sentarmo-nos à mesa. a refeição, conquanto esperada, parecia não ter o mesmo gosto que se adivinhava antes da travessura, porque o menino nos monopolizava tanto que até sua ausência funcionava como uma presença. decidida, porém, depois de todo esse rebuliço, a aproveitar que há pai e mãe e madrasta no mundo e que a função-hospital decididamente não me cabia, recomecei o processo de encantamento pelo que estava à minha volta: a comida, a companhia, a pequena que já se entretia com os brinquedos que trazia e os do irmão – até que ele volta, sorriso ainda mais farto do que antes da queda, e exibe, como um troféu, o enfaixe em torno do corte (costurado!) e a frase: vovó, nem doeu! a mãe, por sua vez, dizia: esse menino parece que 'tá mais feliz com essa cabeça ponteada! a madrasta, narrava o pai divertido, ao fim e ao cabo foi quem de fato acompanhou o menino na consulta (o que surpreendeu, pelo grau de modernidade, até o segurança do hospital, já que só era permitido uma acompanhante). esta, por sua vez, contava que enquanto segurava a mão do pequeno diante dos seus pedidos, mudos e expressos, de socorro, garantiu-lhe que toda a dor que ele iria sentir com os pontos seria parecida com uma picada de formiga quando da anestesia, no que ele quis crer – e assim foi (conta a lenda que uma lágrima caiu quando essa parte da história ocorreu...)! 
a essa altura dos acontecimentos e das narrativas, tendo-o novamente saracoteando em torno de nós que pudéramos almoçar e fazíamos a digestão no quindim, cantamos: "sambataotao tá doente, tá com a cabeça quebrada…" — com o que ele se divertia e ria a valer, retrucando: foram só dois pontinhos!!! só dois pontinhos!!! 
quanto a mim, tão extasiada quanto extenuada, agradeci aos deuses e deusas existir um ser assim tão pleno de energia  e compreendi o que o Steiner diz sobre ser possível ver na danação de um menino um recado dos céus
  
(agradeço o registro feito pela madrasta do momento mágico da lágrima)

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