era uma mulher negra, já com seus
mais de cinquenta.
os olhos lacrimejavam - e ela me
disse que já foi pior, agora está quase boa.
de minha parte, tinha ido deixar uma
gata pra operar no parque das crianças, num esquema montado por meu pai que se
articula com deus e quase todo mundo pra fazer com os gatos de rua o que o
estado deveria fazer: castrá-los, alimentá-los, proporcionar-lhes o mínimo de
dignidade.
e enquanto ele resolvia alguma coisa,
eu fiquei olhando as muitas caixas que esperavam pela pessoa que levaria
aquelas gatas para a castração.
foi quando ela chegou perto, e puxou
conversa a propósito dos gatos.
percebi sua generosidade pela
quantidade que cria: 12.
mas dos gatos foi passando pros
filhos, pro abandono do marido, pro desolamento de se ver só, sem trabalho, sem
casa, sem nada. foi quando falou que interpelou deus. e que até hoje pede
perdão, porque "foi dura" com deus. disse: "deus, se é bem
aventurado quem cuidou bem de seus pais, por que me deixou cair nesse abandono?"
e disse que teve tal força sua
interpelação, que mesmo tendo desmaiado de fome e cansaço, quando acordou era
outra. andou até uma fábrica, pediu emprego e conseguiu. não assim como eu
narro, mas esperando a pessoa "certa" a quem se dirigir. disse que
foi uma graça estar com todos os documentos (e desde então sempre anda com
todos os seus documentos), porque não fora isso, não teria tido aquela solução.
estava com três dias de parida - e o trabalho era pesado. mas arranjou o
dinheiro do aluguel e conseguiu comida.
depois daquilo a vida mudou.
é o que ela diz.
os filhos se criaram.
já chegou a ser bisavó.
mas não esquece que um dia interpelou
deus.
e pede perdão até hoje pela sua
ousadia.
ao que, depois de tudo ouvir, eu só
retruquei:
mas foi essa ousadia que salvou
você!