a
vida é como andar de bicicleta ―
já dizia alguém.
e
deve ser. o equilíbrio fino entre o manter-se sobre duas rodas e o
ir ao chão por um lapso ou por um nada.
mas
num domingo pode ser que a cidade, sempre (ou quase sempre) hostil
(tenho uma amiga cujo pulso quebrado é prova disso), te acolha com
um caminho todo feito já de manhãzinha até onde você vai tocar ―
e aí você toque pra passantes ou para você mesma ou para seus
amigos de gig (dentre os quais seu próprio filho), e seja
feliz só por poder cantar: “e se eu vier na contramão/de
bicicleta e violão?”... não na gig, é claro, mas pra você
mesma, indo e voltando, com dor nas costas mas ciente cada vez mais
de onde te doem as dores pra, quem sabe?, uma hora dessas se curar!
e
aí de volta, a casa te acolhe, linda e suja como você a deixou. a
vontade de limpar é grande, mas o cansaço da semana é maior. aí
você põe o biquini, bota a roupa pra lavar na função “25
minutos” pra recolher a água de lavar o quindim, e se deita
pra descansar uma hora. dá duas, dá três, dá quatro e só quase
no final da tarde é que a ressaca passa. não tendo bebido nem
fumado, sabe-se bem o que é ressaca quando ainda assim parece
que algo maior que você te pegou.
acordada,
você pensa que agora, sim, a coragem voltou!, você vai
limpar toda a casa como sempre limpou. engano. ledo engano. com o que
sobrou daquilo que te consumiu a semana toda (ao ler um livro chamado
“alegria” você chorou como quase nunca mais em toda a sua
vida...), é possível lavar o corredor, estender a roupa e limpar a
frente da casa. o mais fica pra segunda. segunda é o dia em que tudo
se resolve. mas já a sensação é melhor que a de quando, ao
meio dia, se chegou.
tomado
o banho e sentindo a fome do almoço que se pulou, você pensa em ir
atrás de comida (cozinhar é para os fortes!...), mas a vizinha te
dá uma torta de frango e você se aquieta, já pronta que estava pra
sair na direção de uma “jantinha” que custa o preço pelo qual
você vende um pão. faz um suco, um café, senta pra ver um filme.
aí gritam na sua porta: “maria!!!” você toma um susto, porque
pense: noite de domingo!... você dá comida e água. não é o
bastante: o sujeito fica parado na sua porta. e chora. e está num
estado lastimável. entre você e ele, um portão vazado de ferro e
nada mais. mas você também está num estado lastimável: você se
impacienta com alguém que te chama de maria, que te grita num
domingo e que bêbado e sujo não tem ninguém a quem recorrer. na
verdade, não se sabe quem está num estado mais lastimável... mas
você ensaia paciência e diz-lhe: “tome seu rumo!” ele não
parece ouvir, o que lhe soa como uma provocação. e o mundo todo de
injustiças passa na sua cabeça antes que novamente você repita:
“tome seu rumo!”
que
rumo? ― deve ser o
que ele rumina enquanto emite algo que você não compreende nem quer
compreender. você anda cansada de compreender. você anda cansada.
tão cansada que quando abre suas mensagens e dá-se conta de que
lida com mais energias tronchas do que a sua vã consciência
considera, alguma coisa clama mais fundo pra que nenhum pensamento
você nessa hora emita: e aí você assiste não um, mas dois filmes
sobre john lennon e sua questão com a mãe e a tia.
e
nesse ínterim, um burro – sim, um burro –, quase como que um
convidado ilustre, assoma na calçada. você olha tudo aquilo: você,
o mendigo e o burro – e a história de lennon e todas as histórias
que te circundam, e uma sensação indizível de que não há como a
arte não imitar a vida lhe invade. é um segundo só de insight,
mas vale pelo dia inteiro, pela semana – e pela vida toda. e aí
você desiste de ser má, larga mão do sujeito que te incomoda e se
recolhe. fecha a porta não mais porque ele vá te invadir, mas pra
não incomodá-lo com tudo aquilo que você ainda não equalizou e
pode aumentar um pouco mais a carga do infeliz.
quando
se dá conta, aquele já se foi e chega outro – o que todo dia
estende seu papelão na sua porta mas que de tão familiar já é
quase como um parente. jesus é o seu nome. sem mais pensar,
você finalmente assente: que assim seja, então! amém.
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