quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

da série: mapas da alma

 

A alma.

Quando cansada,

Esvai-se toda a calma.

Quando ferida,

Nada é justificativa.

Quando deixada,

Até o tudo é nada.

 

Alma minha,

Aqui estou eu!

Procurando no silêncio

E na solidão

Os rastros de tua presença.

Procurando no outro e na multidão

Aquilo que te assemelha.

Procurando na natureza

Aquilo que te espelhe.

 

Alma minha,

Aqui estou eu!

Não te desapegues de mim,

Nem quando for o tempo da despedida.

Nem quando de meu já não tiver

Mais nem um sopro de vida.

 

Alma minha,

Aqui estou eu!


maria gigi Tubiba 

 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

da série: é preciso perdoar como se não houvesse amanhã

 ... e todo dia, ao chegar, o fusca no mesmo lugar.

A simples imagem do carro parado ali, na entrada da sua rua, atiça muitas inquietações.

Quem deixaria um carro parado? E por que na sua rua?

Haveria, por acaso, a intenção de dizer: oi, eu existo, não esqueça de mim...? — ou seria pura displicência?

À falta de quem lhe responda, ela simplesmente olha o fusca.

Chegou a memorizar sua placa. Ocorreu-lhe mesmo fazer cálculos numerológicos: o resultado final deu quatro.

Quatro, quadrado, rigidez.

O que dizer de relações onde o quatro impera? Talvez nada, apenas esperar passar tudo aquilo que avulta como uma tempestade que se prepara silenciosamente a partir de um vento leve, de nuvens que se formam, de formigas que mudam seu caminho — e um dia desaba sobre sua cabeça, seus ombros, sua pélvis, seus membros sem nenhum aviso.

Mas e o fusca? Parado. Provavelmente nem mesmo as pessoas que tiram de outras seus pertences se interessam por ele. Mais provável é que seja mesmo um recado.

Qual?

Essa uma inquietação.

Atrás dessa, todas as outras que avultam todos os dias como um relógio que marca.

A falta sentida do que faz sentido ao ler-se o que assoma à visão do fusca ainda não chega com nitidez à consciência. Mas está ali, todos os dias, tão logo saia ou tão logo chegue. Às vezes adia o retorno à casa. Às vezes pensa: será que ainda vai estar lá? Às vezes acorda de noite e vai olhar se ninguém o levou.

Todas as inquietações, porém, não o tiram do lugar. O recado está dado: leia quem puder.

E enquanto não pode, que tal perdoar?

Não o fusca, não seu dono: a si mesma.

Porque por mais esforço que faça, resposta nenhuma virá de fora.

De fora, só o fusca, parado.

De fora, só a chuva, a brisa, o sol, a noite enluarada, a época de mangas, as siriguelas que colorem com seu sabor a vida nem sempre saborosa.

Sabor. Saber. Sabedoria.

Talvez se se perdoar, chegue à razão de ser daquele fusca na sua rua, plenamente parado, plenamente inerte, plenamente exposto em proporção contrária como nada do que gerou esse fato.

E por isso mesmo, o perdão!

Do que se sabe e do que não se sabe.

E o perdão de si, que é de todos o mais difícil.

Teria ela essa capacidade?

Não sabia. Mas ei-la a procurar palavras pra dizer ao [dono do?] fusca: fique à vontade! Hoje, como sempre, fique à vontade!

E depois de liberar-se de si e do que a ata ao fusca, quem sabe escrever outra história. Uma história onde os medos, os descasos, as pequenas violências cotidianas cedem à luz que ela vai abrindo a fórceps nos caminhos de sua alma. Branca. Sua alma branca, como seu corpo é preto, não por racismo ou negação da raça. Branca porque é a cor do fusca, na qual inscreve, a partir de então, uma nova história. A sua.

 

maria gigi Tubiba 

domingo, 12 de março de 2023

domingo, 21 de novembro de 2021


 preto,
quando a gente quer
mas não sabe pra onde correr,
um bom jeito
é se socorrer
naquilo que não vai ceder
nem que a vaca tussa,
nem que o gato espirre,
nem que a galinha chore!
um bom jeito
é não tresvariar nem temer!
um bom jeito
é se re.organizar pra valer!
um bom jeito...
ora, quem sou eu
pra dizer pra um filho de Exu
um bom jeito?
eu me aquieto 
e te imagino calmo:
esse é, talvez,
um bom jeito!

axé, preto!
[no domingo seguinte à tua entrada no terreiro, 
depois de uma lua cheia e de um eclipse]


terça-feira, 16 de novembro de 2021


 então, preto,
enquanto tu vai fazer teu santo,
fico eu cá com os teus santos!
e pense em quão santos são!...
mas eu bem que agradeço:
são um pouco de ti!
que dei de novamente sentir
aquela saudade antiga
quando era tu no iguatu
e eu na lida.
e choro, preto,
como se tu fosse ainda meu menino longe.
acho que é porque o homem em ti
foi buscar em si o que sempre esteve nesse horizonte:
o encontro consigo,
com o Eu,
com o Cristo em si.
que seja bom, preto,
conquanto o tanto!
que seja como
uma boa roda de choro,
um pão feito em casa,
como as boas amizades,
como o Amor,
como a própria saudade
quando sabe o sentido
de ser de cada coisa -
e koisa
e koisa
e koisa
e koisa
e tao!
e koisa
e koisa
e koisa
e koisa
e mel!
axé, meu preto!
[da casinha DaPonte, nesse 1o dia de teu retiro]

domingo, 14 de fevereiro de 2021

balora (da série: das transformações que só a vida faz!)

nunca pensei gostar de cachorro

menos ainda, de uma cachorra!

seu nome é balora

(e por favor, não pronuncie aberto:

meu neto é capaz de virar seu desafeto!...)

 

pois, mas me encanto com esta traquina

que a seu modo parece uma felina.

talvez seja mesmo por isso

que firmamos esse compromisso:

eu deixo de pensar que não gosto de cachorro

e ela só late em urgências ou situação de socorro.

 

... e assim vamos indo:

eu olhando pra ela e achando lindo

no silêncio dessa tarde em que a pele arde

o barulho surdo de um carnaval sem folia

por conta de uma pandemia. 



(da casinha daponte/domingo de carnaval de 2021)