domingo, 23 de outubro de 2016

o encontro (da série: a vida é feita de sincronicidades)


passou o dia a articular o que seria o encontro para a entrega de um livro emprestado por outrem. e combinou isso e aquilo. e deixa na casa de uma amiga não, da amiga, não: ela não atende o telefone... ah, então deixa na tua casa mesmo, eu passo pra pegar quando der... vixe, acho que dá pra hoje ― e nisso o dia consumiu-se, até que saiu de casa pra resolver centas outras coisas.
pois. perseguido e conseguido o primeiro objetivo ― imprimiu contas, pagou-as na lotérica e seguiu ―, viu que melhor seria passar logo na casa de outra amiga e deixar-lhe, por sua vez, um livro que você emprestaria. passou. a amiga não estava, mas sentiu que adiantou algo que, depois da aula que daria à noite, se tornaria mais complexo, dada a vontade de conversar que se instalaria frente ao neto que em casa a esperava, e ela queria ver. feito isso, rumou pra entrega de outros produtos, mais perecíveis, na casa do pai. toma a ciclofaixa. de pronto escuta uma buzina. mas são tantas buzinas no mundo, por que teria que ser comigo?
eis que o celular no bolso vibra. em movimento mesmo atende ― tem aprendido algo de equilibrismo nos últimos tempos. pois não é que era a amiga do livro que você mesmo pedira? e o que ela diz: acabei de te ver passar por mim. você: massa! pois deixa o livro em casa, que passo pra pegar depois de ir no meu pai. ela: tá comigo, aqui; vou parar no próximo sinal.
nem precisou de sinal, visto o engarrafamento habitual. mas você quase foi atropelada por outra bicicleta, tanto foi o entusiasmo ao perceber as artimanhas dessa sincronicidade, que!...
quando ela baixa o vidro do carro e lhe entrega o livro, você só tem tempo de dizer: grata, querida! e ainda tem quem não creia em deus!...
o resto do dia foi pouco pra assimilar o quanto há de trabalho pra que a gente simplesmente seja e deixe ser aquilo que no mundo precisa existir.

domingo, 9 de outubro de 2016

cenas de um domingo de outubro (da série: é preciso ter coragem)


a vida é como andar de bicicleta já dizia alguém.
e deve ser. o equilíbrio fino entre o manter-se sobre duas rodas e o ir ao chão por um lapso ou por um nada.
mas num domingo pode ser que a cidade, sempre (ou quase sempre) hostil (tenho uma amiga cujo pulso quebrado é prova disso), te acolha com um caminho todo feito já de manhãzinha até onde você vai tocar e aí você toque pra passantes ou para você mesma ou para seus amigos de gig (dentre os quais seu próprio filho), e seja feliz só por poder cantar: “e se eu vier na contramão/de bicicleta e violão?”... não na gig, é claro, mas pra você mesma, indo e voltando, com dor nas costas mas ciente cada vez mais de onde te doem as dores pra, quem sabe?, uma hora dessas se curar!
e aí de volta, a casa te acolhe, linda e suja como você a deixou. a vontade de limpar é grande, mas o cansaço da semana é maior. aí você põe o biquini, bota a roupa pra lavar na função “25 minutos” pra recolher a água de lavar o quindim, e se deita pra descansar uma hora. dá duas, dá três, dá quatro e só quase no final da tarde é que a ressaca passa. não tendo bebido nem fumado, sabe-se bem o que é ressaca quando ainda assim parece que algo maior que você te pegou.
acordada, você pensa que agora, sim, a coragem voltou!, você vai limpar toda a casa como sempre limpou. engano. ledo engano. com o que sobrou daquilo que te consumiu a semana toda (ao ler um livro chamado “alegria” você chorou como quase nunca mais em toda a sua vida...), é possível lavar o corredor, estender a roupa e limpar a frente da casa. o mais fica pra segunda. segunda é o dia em que tudo se resolve. mas já a sensação é melhor que a de quando, ao meio dia, se chegou.
tomado o banho e sentindo a fome do almoço que se pulou, você pensa em ir atrás de comida (cozinhar é para os fortes!...), mas a vizinha te dá uma torta de frango e você se aquieta, já pronta que estava pra sair na direção de uma “jantinha” que custa o preço pelo qual você vende um pão. faz um suco, um café, senta pra ver um filme. aí gritam na sua porta: “maria!!!” você toma um susto, porque pense: noite de domingo!... você dá comida e água. não é o bastante: o sujeito fica parado na sua porta. e chora. e está num estado lastimável. entre você e ele, um portão vazado de ferro e nada mais. mas você também está num estado lastimável: você se impacienta com alguém que te chama de maria, que te grita num domingo e que bêbado e sujo não tem ninguém a quem recorrer. na verdade, não se sabe quem está num estado mais lastimável... mas você ensaia paciência e diz-lhe: “tome seu rumo!” ele não parece ouvir, o que lhe soa como uma provocação. e o mundo todo de injustiças passa na sua cabeça antes que novamente você repita: “tome seu rumo!”
que rumo? deve ser o que ele rumina enquanto emite algo que você não compreende nem quer compreender. você anda cansada de compreender. você anda cansada. tão cansada que quando abre suas mensagens e dá-se conta de que lida com mais energias tronchas do que a sua vã consciência considera, alguma coisa clama mais fundo pra que nenhum pensamento você nessa hora emita: e aí você assiste não um, mas dois filmes sobre john lennon e sua questão com a mãe e a tia.
e nesse ínterim, um burro – sim, um burro –, quase como que um convidado ilustre, assoma na calçada. você olha tudo aquilo: você, o mendigo e o burro – e a história de lennon e todas as histórias que te circundam, e uma sensação indizível de que não há como a arte não imitar a vida lhe invade. é um segundo só de insight, mas vale pelo dia inteiro, pela semana – e pela vida toda. e aí você desiste de ser má, larga mão do sujeito que te incomoda e se recolhe. fecha a porta não mais porque ele vá te invadir, mas pra não incomodá-lo com tudo aquilo que você ainda não equalizou e pode aumentar um pouco mais a carga do infeliz.
quando se dá conta, aquele já se foi e chega outro – o que todo dia estende seu papelão na sua porta mas que de tão familiar já é quase como um parente. jesus é o seu nome. sem mais pensar, você finalmente assente: que assim seja, então! amém.