Vitória Nossa (Clarice Lispector)
"O
que temos feito e a isso considerado vitória nossa de cada dia.
Não
temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não
se entende porque não queremos ser tolos. Temos amontoado coisas e
seguranças por não nos termos, nem aos outros. Não temos tido
nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. Temos construído
catedrais e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos
construímos tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a
nós mesmos pois isso seria o começo de uma vida larga e talvez sem
consolo. Temos evitado cair de joelho diante do primeiro que por amor
diga: tenho medo. Temos organizado associações de pavor sorridente
onde se serve a bebida com soda. Temos procurado salvar-nos, mas sem
usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser
inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de
reconhecer sua contextura de amor e de ódio. Temos mantido em
segredo a nossa morte. Temos disfarçado com amor nossa indiferença,
disfarçado nossa indiferença com a angústia, disfarçado com o
pequeno medo o grande medo maior. Não temos adorado, por termos a
sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não
temos sido ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no
fim do dia possamos dizer 'pelo menos não fui tolo', e assim não
chorarmos antes de apagar a luz. Temos tido a certeza de que eu
também e você também, e por isso todos sem saber se amam. Temos
sorrido em público do que não sorrimos quando ficamos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao
outro, acima de tudo. E a tudo isso temos considerado a vitória
nossa de cada dia..."