domingo, 30 de novembro de 2014

citação (da série: mapas da alma)

ENDEREÇO

"Onde fica a casa do amigo?",
perguntou o cavaleiro ainda no limiar da aurora.
O céu parou um instante.
Um passante ofereceu à escuridão das areias o ramo de luz que 
[trazia nos lábios,
com o dedo apontou um álamo e disse:

"Antes daquela árvore
há uma alameda mais verde que o sono de Deus
e lá o amor tem um azul do mesmo tamanho que as penas da [sinceridade.
Segue até o fim dessa rua, que termina atrás da adolescência,
e então dobra em direção da flor da solidão.

A dois passos da flor,
fica ao pé da fonte dos mitos eternos da Terra
e um medo transparente te dominará.
Na intimidade que flui no espaço, ouve um roçar:
olha uma pequena criança
que subiu num alto pinheiro para apanhar um filhote no ninho da [luz,
e então pergunta a ela:
'Onde fica a casa do meu amigo?'"

Sohrab Sepehri 
(poeta iraniano citado in Abba Kiarostami)


quarta-feira, 19 de novembro de 2014

citação (da série: "mudai vossa disposição anímica")

"(...) As leis espirituais revertem as da matéria. Para nossa mente lógica, elas parecem contraditórias. Por exemplo, cada parte contém e forma o todo, mas o todo não é a soma dessas partes e as partes não emergem do todo - o todo e as partes coexistem e formam um ao outro. De maneira semelhante, quanto mais cada um de nós compreende o mundo, mais nosso mundo se alarga e mais coisas há para compreender - e assim ficamos tentando entender um mundo que nós mesmos estamos criando à medida que caminhamos; quanto mais sabemos, mais misteriosa se torna a vida. Cada movimento em direção à consciência aumenta a esfera do inconsciente - aprofundando-a e enriquecendo-a; consciente e inconsciente se desenvolvem um a partir do outro, e o nosso mundo se desenvolve a partir dos dois.
Perdemos nossa vida para poder encontrá-la. Enfrentamos a crise e a dor para podermos ser sacudidos de nosso sono e despertar; podemos até ser gratos por aqueles eventos que nos pareceram os mais doloridos e incompreendidos na época em que aconteceram. Quando odiamos, quando não conseguimos perdoar, prestamos um desserviço a nós mesmos e a ninguém mais, porque nos amarramos, e amarramos nossas energias, ao objeto do qual queremos nos livrar. E assim nos tornamos aquilo que mais desprezamos. Por outro lado, quando somos generosos, certamente somos recompensados; o ato de dar expõe uma abertura que permite ao mundo lhe retornar uma dádiva mil vezes maior. Ao mesmo tempo, a incapacidade de receber presentes e ofertas com graça se torna um obstáculo ao ato de dar - pois receber com graça as ofertas dos outros é, em si mesmo, um presente. Para que confiem em nós, é preciso confiar - a única forma de curar o sentimento de traição é oferecer confiança, e não ficar esperando uma prova de confiabilidade alheia. O caminho do espírito reverte as expectativas normais.
Não podemos andar para a frente a menos que estejamos dispostos a abrir mão das coisas; e não conseguimos abrir mão das coisas a menos que tenhamos algo para deixar para trás, a menos que tenhamos encontrado algo de valor. Não estão nos pedindo que aceitemos o que vier (porque, de qualquer jeito, a vida é cheia de contradições), mas que caminhemos ao encontro do que vier, com o discernimento construído sobre uma profunda e respeitosa compreensão, e tentemos reagir de forma apropriada."
(in "Artistas do Invisível" de Allan Kaplan, pp. 148-149)

terça-feira, 4 de novembro de 2014

tenho dito ao meu coração (da série: série nenhuma)

tenho dito ao meu coração:
deixe que o vazio se instale...
não tenha medo daquilo que ele lhe fale
— e ele talvez nem fale, só cale...

tenho dito à minha menina:
eu estou bem aqui, neguinha!
não carece ter medo,
que o medo de nada vale.

tenho dito a mim mesma:
minha alma, se acalme!
a mão que tece o tecido
não julga o tempo perdido.

e nisso a vida vai seguindo,
sem ânsia, sem pressa, fluindo...